Medíocres e Patéticas Pessoas

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terça-feira, outubro 14, 2014

Carta a meu pai


Dear Dad,

ultimamente tenho pensado muito em ti. Pena que não consigas ouvir-me, nem ler o que escrevo. Pois tenho mais maturidade e já vivi algumas coisas que neste momento me faria dizer coisas mais inteligentes do que alguma vez te disse.

Sempre pensei que teria tempo para isso. Bem, para dizer a verdade talvez nem nunca pensei muito nisso. É um cliché, mas um só se apercebe do que tem, quando já não o tem. E assim foi comigo.

Não posso dizer que fiquei desamparada, mas quase. Foi como se o chão ruisse e eu já não soubesse caminhar nem por onde o fazer. Por sorte não viste no que eu fiz a mim. Mas por azar também não viste quem me salvou e quem me salva todos os dias.
Lamentavelmente não estiveste em todos os momentos bons que consegui ter depois da tua partida. E não pude contar contigo nos piores que tive ainda depois de te ter perdido.

Não me foste levar nem buscar ao aeroporto quando fui passar um ano fora. Não me ligaste durante esse ano que parecia não terminar. Não me ajudaste com a bagagem pesada quando tive de partir para onde estou. Não vieste conhecer as minhas mil casas que tive na Suíça, nem conheces a que tenho agora. Não fizeste festas à minha pastora alemã, que sei que irias adorar é mesmo linda. Nem tão pouco viste o Bob a correr feito maluco, provocando a Black.

Não me ajudaste quando me sentia mal por não saber falar a língua do país onde estou, quando me tratavam mal por ser estrangeira e imigrante, quando não via esperança em arranjar um bom trabalho.
Falhaste quando precisei de ti no inicio da minha vida de adulta.

Mas também não me entregaste ao homem que eu amo tanto, quem me salvou. Não viste as tuas filhas casarem. Não bebeste com os teus amigos, nesses dias, as garrafas de whisky que certamente irias abrir para festejar.

Não me orientaste quando tentei regressar a Portugal. Não me deste conselhos desde que fui para o Brasil. Não estiveste lá para impedir ou tentar impedir aquilo que o avô fez. 

Não conheceste nem conheces aquilo que melhor fiz na vida, o meu filho. Sempre quiseste ter um rapaz mas não viveste o suficiente para o ver. Ele iria adorar conhecer-te. Sei que irias brincar tanto com ele, que ele não falaria noutra pessoa. Ele tem algumas coisas parecidas contigo. Quando se ri à maroto, só lhe falta o dente preto (que um estupido dentista te deixou como souvenir), para ser uma cópia tua.

Não estás cá para ver o que eu consegui fazer até agora da minha vida. O que eu tive e tenho de lutar todos os dias ao viver longe de tudo e todos, num país quase sem sol e com muita neve, que eu tanto odeio.
Não me apoiaste nem me defendeste de quem me maltratou durante estes anos. Especialmente de quem  tentou sem êxito separar a minha família e que constantemente me ofende nas minhas costas e na minha cara.

Porque é que me deixaste tão cedo? Era suposto teres vivido tudo isto comigo. Não tinhas nada que fumar. Bem sei que poderia ter acontecido na mesma. Mas ao menos não terias contribuido para a tua própria morte. Eu perdi o único que me amou desde que comecei a respirar por aquilo que realmente sou. Nunca me julgaste, mesmo quando soubeste que tinha começado a fumar e ficaste desiludido.
Sempre mostraste o orgulho que tinhas de mim. Não tinhas medo de me mostrar que me amavas e eu de ti sempre o soube. Nunca hesitaste em me abraçar e me beijar nem de me dar carinho.

Quando penso bem sobre as coisas, fico chateada contigo. Partiste demasiado cedo e eu não tive como dizer-te adeus. Sempre acreditei que ias lutar e sobreviver. Mas tu deixaste-te ir... Eu saí do hospital e só te disse até já... porque tu não esperaste por mim? Porque não me avisaste que ias embora? Aliás... tu desapareceste antes disso... Não tiveste cara para nos enfrentar...Ou o que raio se passou?

Foi tudo tão rápido... ainda hoje não consigo entender como foste capaz de morrer. Eu senti-me tão sózinha... Por vezes sonho contigo ainda vivo, nos dias de hoje. É tão estranho quando acordo e me cai a realidade nos ombros.

Sei que não tens culpa a 100%. Nunca pensaste muito nisso, que irrias morrer doente. Muito menos tão cedo. O teu seguro de vida foi feito a pensar em acidentes e não por doença. Ao menos não soubeste o que te aconteceu. Ou pelo menos não na totalidade.
A tua última semana foi a pior da minha vida. Tu estavas lá, mas não estavas. Não dizias nada com grande sentido. Ficaste contente por ver a tua mãe, o que logo aí mostrou a tua demência. Ela que nem ao teu funeral foi... Coisa reles...
Na véspera de morreres vi nos teus olhos que estavas lá. Estavas triste. Apercebeste-te de que ias morrer. Foi duro ver-te assim. Tentei sempre fazer-te sorrir. Mas não era fácil ver-te naquele estado. Enfim...
Irias ficar era danado de saber que o teu irmão apareceu no teu funeral para nos provocar; só de passagem de carro, e teve a lata de sorrir para mim. Otário. E a tua maninha também fez das dela... Nunca percebi nem hei-de perceber que prazer macabro lhe deu obrigar-me a informar a tua mãezinha da tua morte, quando ela já sabia. Ela é que me devia ter ligado a dar os sentimentos e a perguntar se eu precisava de algo. Não era eu com 19 anos que tinha que ligar a quem nunca me ligou...

Mas na altura também não vi bem o que se passava.. estava amorfa... Até as flores por debaixo de caixão me puseram a arrumar e eu não tive reação para além de cumprir ordens. O que eu gritei. Tu não ouviste. Eu pedi que acordasses... Tu não te mexeste... Foste... sem luta... sem saberes que tinhas ido

Foi muita gente ao teu funeral. Claro que depois deixámos de ter as visitas dos teus amigos. Já não havia mais whisky para beber. Nem jantaradas, então deixaram de aparecer. Tios, padrinhos, colegas e amigos... tudo desandou. A mãe tem novos amigos. Não conheço quase ninguem e nem quero... Não tenho paciência. Depois no final deixam de aparecer e eu não estou para me importar com isso.

Os meus amigos também mudaram. Uns matêm-se mas pouco sei deles. Outros foram e deram lugar a melhores. É assim a vida. Mas tu não sabes. Foste-te embora. As pessoas que pouco valor davam à vida agora não dão nenhum... Cada vez está tudo mais complicado e as pessoas perdem o seu carácter por pouco. Por isso foste talvez numa boa altura. Ainda não estava tão mau. Só estava a começar...

Dez anos, 5 meses e um dia... Pouco tempo e tanto tempo.

Não viste que emagreci. Já não sou redondinha como antes o meu cabelo não transpira a quantidade estupida de volume que acumulava em tempos. Entretanto já voltei a engordar... bem virei obesa com a gravidez. Decidi que comia mesmo por dois, mas só porcaria e fiquei com 84 Kg, mas já voltei aos 60. Não são os 57 que tinha, nem os 50 com que me casei, mas já não está mau!

Irias te rir ao saber que tinha ido à casa de banho de um posto da GNR antes de me casar. Bebi muito champanhe e foi a única possibilidade que tive ao deambular de carro à espera do noivo, que ainda hoje se atrasa mais que eu! :)

Mas não ias gostar de saber que na véspera do casamento fiquei com o carro preso na casa nova da mãe no portão de entrada. Nem andava para a frente nem para trás. Foi um problema, mas resolveu-se na manhã seguinte...

Sim, a tua casa já não é nossa... A mãe não conseguiu viver lá... Não foi de meu agrado, mas não cabia a mim decidir. A casa era vossa e tu já não podias opinar, se ela não a queria, quem era eu...

Mas bom... Sei que te ririas das piadas do Milton. Mas o Diogo tem ainda mais piada. É ainda genuíno e as coisas saem sem ele saber. Para nós é que tem piada. Ele já se vai apercebendo e às vezes força a coisa. Típico.
Não o ouviste a falar tão mal que só eu o entendia e, por vezes, com dificuldade. Como ele dizia "Ti lalá", passando para o "leitinho com chocoate" e agora "leite com chocolate, por favor". Como ele mal se sentava e de repente já corria por todo o lado. Como ele ri e como ele chora. Como ele foi um homem crescido e deixou as fraldas rápido. Como ele diz sem problemas que nos ama, como o avô fazia. Como a mim me mostraram e eu lhe mostro.

Tanta coisa que perdes... Mas o pior é que tu não te dás conta. Nós é que sentimos isto. Eu é que me apercebo disto tudo. E por muito que eu fale de ti ao Milton e ao Diogo eles nunca vão entender, porque não te conheceram e tu nunca os conhecerás... Talvez quando o mundo for justo. Se tivermos essa sorte.

No final de contas enquanto vivermos esta vida ingrata, nós é que perdemos. Perdemos quem tanta falta faz e nos cruzamos com gente que teria ido bem no teu lugar. Mas nós não escolhemos. Nem Deus... Assim é e assim será... E eu cá tenho de me aguentar sem ti.
Sem te ter abraçado em tantos momentos que procurei e procurarei esse abraço. Sentindo por mim e por ti a tua ausência. Chorando as minhas e as tuas lágrimas.

Como eu gostaria de poder de acabar esta carta com:

"Falamos mais logo ao telefone ou por skype. Beijinhos"

Mas terei de terminar assim:

Talvez tenha a sorte de te reencontrar num mundo distante, numa outra oportunidade. Até lá, dorme bem e sonha connosco para que não te esqueças de nós.

A tua,
Calica